domingo, 18 de novembro de 2007

Então é Natal

Acho que gosto de textos e filmes porque é fascinante como alguém pode descrever com palavras e/ou imagens sentimentos tão próximos. A sensação de reconhecimento, principalmente quando aquele que escreve nos acerta sem ao menos me conhecer, faz com que eu sinta um conforto inexplicável. Não faço terapia. Por isso leio e vou ao cinema.
PS: A obrigação do sentimento de felicidade me sufoca mais do que andar na 25 de Março nessa época.

Comemorar, recordar

Saudade é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam e continuam presentes como dor

É PRECISO PREPARAR A ALMA com antecedência para o evento. O tempo da "comemoração" se aproxima. Comemorar quer dizer "trazer de novo à memória". Para quê? Para que se cumpra o ditado popular que diz "recordar é viver". Dentre todos os seres vivos os seres humanos são os únicos que se alimentam do passado. Eles comem aquilo que já deixou de existir.Proust deu o nome de "Em Busca do Tempo Perdido" à sua obra clássica. Se está perdido irremediavelmente no passado, por que se entregar à tarefa inútil de procurá-lo?Por fora, no mundo cotidiano do trabalho, estamos em busca de coisas novas. Mas a alma, nas penumbras em que mora, vive à procura de coisas velhas. Alma é saudade. Saudade é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam. Foram perdidas e, a despeito disso, continuam presentes como dor: "...Que a saudade dói latejada, é assim como uma fisgada no membro que já perdi..." Saudade é a presença de uma ausência.Para a saudade não existe cura. Tudo o que podemos dar a ela como consolo é inútil. Por isso, Fernando Pessoa escreveu: "Mas por mais rosas e lírios que me dês, eu nunca acharei que a vida é bastante. Faltar-me-á sempre qualquer coisa, sobrar-me-á sempre de que desejar..." A alma é como um queijo suíço, toda cheia de buracos que doem no seu vazio...Há um esquecer que é uma felicidade. É como mar que limpa e alisa a areia que os humanos haviam pisado na véspera sem pedir desculpas. Já tive essa estranha sensação bem cedo na praia diante da areia lisa, um sentimento de culpa por machucá-la com meus pés... O esquecimento alisa a areia. Tudo fica puro, como se fosse a primeira vez. Isso, do lado de fora. Mas lá no fundo, onde mora a saudade, não há esquecimento. Porque lá só moram as coisas que foram amadas. E o amor não suporta o esquecimento. "Aquilo que a memória ama fica eterno", escreveu a Adélia.Há a estória daquele homem dilacerado pela dor da saudade de sua amada que morrera. Em desespero, dirigiu-se aos deuses pedindo que a devolvessem. "A morte é mais forte que nós", responderam os deuses. "Não podemos devolver o que a morte levou. Mas podemos pôr um fim ao seu sofrimento. Podemos fazê-lo esquecer a sua amada. Podemos curá-lo da saudade..." Horrorizado o homem respondeu: "Não, mil vezes não! Pois é o meu sofrimento que a mantém viva junto de mim!"Palavra boa para dizer isso, parente de "comemorar", é "re-cordar". Pus o hífen de propósito para destacar o "cordar", que vem do latim "cor", que quer dizer "coração". Há memórias que moram na cabeça, muito úteis. Se nos esquecemos delas, cuidado! Pode ser Alzheimer se anunciando! Essas memórias não doem, são informações que levamos no bolso, ferramentas. Mas há outras memórias que moram no coração, são parte da gente. O Chico sabia e escreveu: "Oh pedaço arrancado de mim..."Já estou preparando a minha alma para o evento. O Natal vai fisgar o membro que já perdi. Perdi a minha infância. Gostaria mesmo era de ir para um mosteiro, longe de comilanças, presentes e risos. Num mosteiro eu poderia experimentar a bem-aventurança na alma que Fernando Pessoa descreveu como a alegria de não precisar de estar alegre... Eu gosto da minha tristeza natalina. Ela é verdadeira. Sou como aquele apaixonado que não queria ser curado da saudade...

Coluna do Rubem Alves, publicada na Folha de S. Paulo do dia 13 de novembro de 2007

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O ano em que fui expulsa da Terra do Nunca

De uma reunião na semana passada só me lembro de uma coisa em meio a tantos assuntos importantes. Alguém disse que só havia 32 dias úteis até o final do ano. Praticamente um mês em dois. Ou seja, o ano já acabou, o supermercado já está vendendo panetone, o Papai Noel já está sentado em seu troninho no shopping e a 25 de Março já teve o trânsito interditado para as compras infernais de fim de ano (e isso já é assunto para outro post).
Todo esse nariz de cera é pra dizer que embora estejamos na primeira quinzena de novembro, o ano já acabou! E todo final de ano todo mundo faz aquele bendito balanço do que aconteceu e promessas para o ano seguinte. E eu, que nunca fui dessas de fazer listinha de final de ano, que sempre dão em nada, estou aqui...

Embora sempre solte aquela frase “Nossa, como o ano passou rápido”, o meu 2007 teve doze horas a mais do que os outros. E essas horas fizeram toda a diferença. Tudo foi muito diferente. O primeiro dia do ano foi muito frio. E parece que nunca mais esquentou. Mas pelo menos, pude aproveitar a neve para experimentar a insanidade de descer uma montanha de gelo em cima de uma prancha.
Outra insanidade, pelo menos para uma sedentária convicta, foi pedalar trinta quilômetros- ida e volta- para passar duas horas na praia. No frio. Na lista também estão passar catorze horas de pé (passei mais horas de pé do que em toda a minha vida de usuária de transporte público), trabalhar, sete dias por semana por várias semanas (ah, mencionei as variáveis “bengala” e “tala”?), olhar duas mil peças iguais por dia; seis meses na completa abstinência da sétima arte; descobrir através de gestos que estava numa cidade completamente estranha, num país estranho à meia-noite na véspera da volta ao Brasil...
Mas teve as descobertas! Experimentar iogurte de babosa (e achar bom); experimentar gafanhoto caramelizado ( esse é mais ou menos); andar sozinha de trem na segunda de manhã em Tóquio (nem foi tão traumatizante); conhecer alguém que vem de um país que se chama Uzbequistão, dormir numa cápsula igual ao do filme “Quinto elemento”, viajar de uma ilha estranha para outra mais estranha ainda sozinha e nada de ruim acontecer; sentir nos pés a água gelada de outro oceano, além do Atlântico; mergulhar na água azul turquesa e sentir um barato muito bom (e lícito); aprender algumas coisas, mesmo que poucas sobre um país completamente estranho, mas que de alguma forma faz parte de mim; ver o tal do Monte Fuji, mesmo que de longe; andar no trem bala, ver o sol nascer na Terra do Sol Nascente...
E o que fez a completa diferença: encontrar e reencontrar pessoas. As minhas pessoas. Aqui ou lá. E começar a aprender a partir, regressar, abandonar, ser abandonada, despedir, comemorar, mudar. Que venha 2008.